Existe um consenso geral em relação à ordem dos pratos nas refeições: o salgado vem antes do doce. E assim costuma ser também para os vinhos. Rótulos de uvas doces, como Moscato d’Asti, Riesling, Tokaji ou Sauternes, ficam quase sempre no fim do menu, sob o título “Vinhos de Sobremesa”.
No entanto, em alguns países, é comum começar a refeição com um vinho doce, caso do clássico Vinho do Porto, em Portugal, que pode fazer as vezes de aperitivo ao ser combinado com água tônica. Na França, começa-se o jantar com uma taça de Porto Tawny. Contudo, na América o sabor adocicado carrega um certo descrédito para abrir refeições, o que pode explicar a falta de reconhecimento dos vinhos doces por estas bandas. O que é uma grande injustiça!
“Qualquer acento doce parece ser considerado fora de moda, e muitos apreciadores de vinho acreditam que vinhos doces sejam menos sofisticados”, diz Jim Rollstom, mestre sommelier do restaurante Manresa, que detém três estrelas Michelin em Los Gatos, na Califórnia.
Zwann Grays, sommelier do Bib Gourmand Olmsted, em Nova York, concorda: “Os Estados Unidos costumam temer o açúcar. É uma luta para vender, por exemplo, um Riesling, porque os clientes têm certeza de que é um vinho muito doce, enquanto eu explico que é uma bebida que quase não tem açúcar residual. E, ainda assim, há uma sorveteria lotada em cada esquina de Nova York... Nós gostamos de doce, mas, com vinho, ele virou tabu em algum momento da história”.
O que é vinho doce?
Vinhos doces são, é claro, mais adocicados e podem ser produzidos sob vários métodos. O mais simples deles envolve um fungo chamado Botrytis, também conhecido como “podridão nobre” ou “mofo cinzento”, que desidrata as uvas, intensificando os sabores e níveis de doçura. As uvas mais famosas que reagem com esse fungo são encontradas na região francesa de Bordeaux, nas vinícolas de uvas Sauternes. Outros vinhos doces são feitos com uvas muito maduras, uvas congeladas ou com uvas secas, e podem ser encontrados em qualquer parte do mundo.Vinhos doces têm níveis de açúcar diferentes, que podem variar de 25 g/litro de açúcar residual, como é o caso do vinho seco Kabinett Riesling, até mais de 450 g/litro em um Tokaji Eszencia, explica Jeremy Shanker, sommelier-chefe no estrelado Michael Mina, em São Francisco.
Para que a refeição seja aproveitada ao máximo, a harmonização da comida e do vinho depende de um bom equilíbrio. “Um pouco de doce faz com que a comida salgada fique melhor ainda. O doce também realça os sabores azedos e picantes. Combinar vinhos doces a pratos com esses sabores - especialmente se forem bem acentuados - confere equilíbrio à experiência gastronômica, e permite que você deguste sabores familiares de uma forma completamente nova”, diz Sarah Thomas, sommelier do restaurante Le Bernardin, que detém três estrelas Michelin.
Com esses conceitos em mente, vamos nos afastar um pouco da teoria do vinho doce e descobrir como, na prática, sommeliers dos Estados Unidos harmonizam a bebida com pratos salgados.
Pratos picantes e vegetarianos
A doçura dos vinhos tem ótimo efeito ao equilibrar aspectos de uma receita, especialmente o picante. O vinho Riesling lidera a seleção de rótulos que harmonizam bem com sabores apimentados. “Nada aplaca melhor a picância, como a da gastronomia tailandesa, como um Riesling com uma quantidade considerável de açúcar residual”, diz o sommelier Ryan Stetins do Compline, em Napa.Scott Baker, sommelier do Somni, duas estrelas Michelin de Los Angeles, concorda: “Para pratos picantes e vegetarianos, como curries, eu recomendaria um Riesling com sabores de frutas como maçã ou pêra, ou um vinho mais caramelado - eu adoro o Memorista de Ovun, em Oregon”.
“Moro em Los Angeles e estou acostumado às culinárias japonesa, coreana e tailandesa. Um Riesling com um pouco de açúcar residual já tem um resultado muito melhor do que um Cabernet Sauvignon”, afirma Jordon Sipperley, diretor de bebidas do estrelado Dialogue, em Santa Monica.
Receitas com cogumelos também fazem bom par com vinhos doces. “O cogumelo realça o gosto do Botrytis, que, afinal, também é um fungo”, diz Shanker.
Frutos do mar cozidos ou grelhados
“Quando penso em um camarão na grelha, imediatamente me vem à mente um sabor cítrico e doce”, diz Mark Guillaudeu, diretor de bebidas do Commins, restaurante com duas estrelas Michelin.Ele se inclina mais aos vinhos do tipo passito, vindos da Itália e detentores de sabores mais frescos e frutados: desde um delicado Erbaluce di Caluso até o Moscato di Noto, da Sicília. Os vinhos da uva Moscatel vão especialmente bem com pratos que tenham laranja.
Para frutos do mar grelhados, como a lagosta, a sommelier Emilia Aiello, do Lupa Osteria Romana, em Nova York, recomenda o Sauternes de Bordeaux. “As frutas harmonizam muito bem com frutos do mar - é uma combinação muito usada na cozinha asiática. A acidez do abacaxi e o sabor acentuado do limão parecem improváveis, mas harmonizam muito bem com a carne da lagosta, que é mais adocicada. O defumado que vem da grelha também é ótimo par para os sabores de nozes e mel do vinho”.
Ceviches e receitas com peixes crus
Shanker defende que um Riesling seco é a melhor opção de harmonização para peixes crus. Como muitas dessas receitas – em especial, o ceviche - tem temperos mais picantes, são perfeitas para serem acompanhadas por um vinho com baixo nível de álcool e sabor mais adocicado.“Além disso, os Rieslings alemães têm níveis mais altos de acidez do que qualquer outro vinho doce. Essa acidez é importante para fazer frente a temperos mais cítricos, à base de limão, por exemplo. Um vinho com menos acidez poderia “desaparecer” ao ser combinado com um prato que já é muito ácido”, explica Shanker.
Aves
As carnes de aves são quase como uma lousa em branco: elas fazem bom par com praticamente qualquer vinho.“É comum vermos, por exemplo, receitas com pato que têm companhia de molhos doces, com frutas. Em vez de colocar esses elementos na própria receita, você pode optar por trazer esse efeito por meio do vinho, como um Pedro Ximenez”.
Outra ótima opção é um Sauternes. “O sabor caramelizado e levemente defumado de um Sauternes envelhecido harmoniza lindamente com um peito de pato bem crocante. A complexidade do vinho combina com a textura gordurosa e poderosa do pato”, acrescenta Shanker.
Para Marissa Payne, sommelier do Cotogna, em São Francisco, uma das melhores harmonizações é a combinação de vinho doce com frango frito. “Você consegue equilibrar muito bem o sal e a crocância do frango com uma bebida doce. O sal e o doce podem sempre andar juntos”, diz Payne. “Se fosse para escolher um vinho italiano, seria o Felsina Vin Santo 2007, da Toscana. Mas se fosse um francês, seria um Sauternes 2015, de Bordeaux”.
Um frango assado e suculento faz boa companhia para um Macvin, de acordo com Grays. Esse estilo de vinho oferece um acento de nozes e caramelo que combina muito com esse tipo de receita.
Carne vermelha
É de conhecimento geral que um bom Vinho do Porto harmoniza com embutidos. Mas, para Thomas, o melhor par para carnes de charcutaria é um vinho seco Lambrusco. “A doçura leve equilibra com o salgado da carne embutida, e as bolhas ajudam a levantar o paladar de toda a deliciosa gordura”.Nossos sommeliers também concordaram que o vinho Madeira é ótimo par para a maioria das carnes vermelhas, sejam cruas, cozidas ou maturadas. “O Madeira acrescenta profundidade à carne vermelha, que já é uma proteína muito substancial. Se a carne foi bem salgada e temperada, o Madeira é campeão em equilibrar os sabores”, diz Grays.
Um bom Malbec, da Argentina, também harmoniza bem com as carnes vermelhas. Payne recomenda um Malbec bem encorpado e com forte tanino, mas com baixo teor alcoólico - assim, ele não ofusca a carne.