O universo dos destilados é enorme -- e suas combinações, infinitas. Mas são raros os drinques que carregam consigo um raio de sol e um vento fresco como a caipirinha, nascida e criada aqui.
A cachaça é a matéria-prima do drinque mais famoso do país. Antes considerado produto menor, pouco valorizado pelos próprios brasileiros, o destilado de cana-de-açúcar cuja história se confunde com a colonização tem ganhado importância dentro e fora do Brasil.
Nos últimos anos, chefs e bartenders têm olhado com mais carinho para as aguardentes brasileiras. Entre os entusiastas está o casal de cozinheiros Janaina e Jefferson Rueda, donos da Casa do Porco, Bib Gourmand de São Paulo, e do Bar da Dona Onça, Prato MICHELIN, na mesma cidade. O casal serve cachaça e propagandeia seu elo com a cultura caipira.
Vale aqui fazer uma diferenciação: a cachaça é produto da cana-de-açúcar com gradação alcoólica de 38% a 48%, fabricada com ou sem alambique de cobre. Se o teor alcoólico for inferior ou superior ao indicado acima, o produto deve ser chamado de aguardente.
Sua valorização é resultado do esforço de especialistas e apreciadores, além das próprias marcas, que com câmbio favorável decidiram investir em exportação. Entre esses estudiosos está Felipe Jannuzzi, criador do site Mapa da Cachaça. “O consumo tem crescido muito na Europa”, afirma ele. Exporta-se muito para o Paraguai, mas o segundo maior comprador de cachaça brasileira é a Alemanha. E, daí em diante, basicamente os primeiros lugares são todos ocupados por países europeus.
Para Jannuzzi, é preciso desconstruir a imagem que a cachaça tem lá fora; por muitos anos, ela foi vendida como o “rum brasileiro”, apelido que não dá conta de sua história e complexidade.
“O rum nada de braçada na coquetelaria porque ele está inserido numa cena mais ampla. Ao longo do século 20, filmes, livros, além de hotéis e restaurantes de fama internacional, acabaram vendendo ao mundo uma espécie de ‘soft power’ do rum, graças aos drinques criados e ao ‘tiki’, produção cultural e estética que mistura elementos típicos dos países indonésios, principalmente do Havaí. O rum não é ‘tiki’, já que é produzido no Caribe, mas acabou levando vantagem porque foi inserido nessa cultura”, explica Jannuzzi.
Outra dificuldade é o fato de que, para se fazer caipirinha, principal drinque feito com cachaça, é necessário importar também o limão-taiti, para ficar na receita clássica.
Ainda assim, a cachaça vem construindo seu caminho. Marcas consolidadas no mercado, bem como selos mais artesanais, começam a aparecer em bares descolados e na carta de restaurantes, tocados por brasileiros ou não.
Em Nova York, o café Casa, Prato MICHELIN de Jupira Lee, brasileira de ascendência coreana, serve caipirinha como se deve -- com limão-taiti e uma folha de hortelã. “O restaurante tem mais de 23 anos. Acho que devo ter servido quase 1 milhão de caipirinhas”, brinca a chef.
Compreensível encontrar, em algumas casas em Portugal, oferta de cachaça e de caipirinha. Na carta do restaurante 100 Maneiras, uma estrela MICHELIN de Lisboa, a caipirinha responde pelo nome “Garota de Ipanema” (à base de cachaça, limão kafir, folhas de pandan e caju). Além dela, o bar ainda oferta cachaça em doses, oferecendo marcas industriais e artesanais. Fogo, Prato MICHELIN na mesma cidade, também vende cachaça em doses ou na caipirinha.
Também é possível pedir um drinque com cachaça no Blind Pig, bar do elegante Social Eating House, Prato MICHELIN que fica no Soho, em Londres. Noizé, Prato MICHELIN também de Londres, restaurante tocado pelo chef Mathieu Germond, serve caipirinhas há alguns anos -- para ele, “caipirinha é um clássico” das cartas de coquetelaria.
Como substituto de outros ingredientes alcoólicos, usados em receitas, a cachaça também tem sido usada por cozinheiros para aromatizar pratos. Rafael Cagali, chef do Da Terra, duas estrelas MICHELIN de Londres, conta que serve uma espuma de caipirinha como snack e um sorvete de cachaça com mole de banana e caviar.
OKA - Espuma de cachaça de jambu do menu degustação - foto de Julie Limont
Outro chef que carregou cachaça e caipirinha na mala é Raphaël Rego, do Oka, uma estrela MICHELIN de Paris. Um dos pratos de seu menu-degustação, a propósito, é uma espuma de cachaça, dessa vez, de uma fruta local parecida com jambu. No Instagram, o chef confessa sentir “saudade da caipirinha”. Quem não sentiria?
OKA Cachaça Tradicional