Ter uma Gala própria e separada de Espanha para apresentar os restaurantes que integram a seleção do Guia MICHELIN pode ser uma novidade em Portugal. No entanto, a relação do país com a célebre publicação remonta a muitas décadas. Estamos a falar de mais de um século!
A primeira edição do Guia a incluir Portugal foi publicada em 1910, abrangendo também o território espanhol. No entanto, apenas anos mais tarde, após diversas edições dedicadas a ambos os países, surgiram as primeiras Estrelas. Na publicação de 1929, por exemplo, o restaurante do Hotel Santa Lusia, em Viana do Castelo, destacou-se ao receber uma Estrela. Contudo, esta distinção era diferente da que conhecemos atualmente. As Estrelas, que mais tarde se tornariam um símbolo global de qualidade gastronómica, foram introduzidas no Guia em 1926, mas distinguiam "mesas de renome", não estabelecimentos com um valor gastronómico incontestável, e seguiam um sistema que ia até cinco Estrelas. O modelo atual com a hierarquia de três Estrelas foi implementado em 1931, e cinco anos mais tarde, foram publicados os critérios aplicados para a atribuição destes reconhecimentos.
Um pouco mais sobre a história do Guia MICHELIN
No final do século XIX e início do século XX, os irmãos André e Édouard Michelin, fundadores da empresa homónima de pneus, procuravam apoiar a florescente indústria automóvel e, simultaneamente, fomentar o crescimento do grupo Michelin. Entre muitas outras iniciativas, decidiram criar um pequeno guia, para ajudar os motoristas a planear as suas viagens, que fornecia informações práticas, como mapas, oficinas mecânicas, postos de combustível, instruções sobre como trocar um pneu e, ainda, lugares para comer e dormir.Lançado pela primeira vez em França em agosto de 1900, o Guia MICHELIN nasceu com uma visão ambiciosa. Na sua introdução, André Michelin escreveu: “Esta obra surge com o século e durará enquanto ele durar”. A profecia parecia ambiciosa para a época, mas hoje vemos que foi mais do que cumprida.
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Portugal no mapa
Em 1936, pela primeira vez, um restaurante português foi reconhecido com duas Estrelas: O Escondidinho, no Porto, destacou-se como pioneiro com a maior distinção já atribuída em Portugal (o país ainda não possui estabelecimentos com três Estrelas).Após o lançamento do Guia de 1936-38, a publicação foi suspensa devido às consequências da Guerra Civil de Espanha e por conta da Segunda Guerra Mundial. O território luso apenas regressou às páginas do Guia em 1973, numa edição conjunta para Espanha e Portugal, que perduraria por 50 anos.
Após O Escondidinho, que permanece aberto, embora já não seja mencionado no Guia, foi preciso esperar mais de 60 anos para que outro restaurante, o Vila Joya, em Albufeira, conquistasse duas Estrelas — um reconhecimento que mantém até hoje. Dieter Koschina, o cozinheiro do Vila Joya, foi, durante 13 anos, o único chef à frente de um restaurante em Portugal com duas Estrelas MICHELIN. Chegou ao Algarve em 1989, a convite de Claudia Jung, dona do hotel homónimo, que procurava um cozinheiro para o seu restaurante. Em 1994, conquistou a primeira Estrela e, cinco anos depois, a segunda, estabelecendo o Vila Joya como referência absoluta na cena da restauração portuguesa e uma fonte de inspiração para chefs de todo o país.
Esse marco abriu uma década de ouro para a gastronomia portuguesa: o Belcanto, de José Avillez, recebeu as suas duas Estrelas em 2015, tornando-se o primeiro restaurante da capital a atingir esta distinção. O The Yeatman, em Vila Nova de Gaia, e o Il Gallo D’Oro, no Funchal, também conquistaram duas Estrelas em 2017. Este, aliás, foi o ano mais prolífico da cozinha portuguesa no Guia, com o reconhecimento de outros grandes restaurantes de norte a sul do país, como o Alma e o Loco, em Lisboa, o William, no Funchal, e a Casa de Chá da Boa Nova, em Leça da Palmeira. O Lab by Sergi Arola e o Antiqvvm, no Porto, também foram distinguidos com uma Estrela MICHELIN nesta mesma edição do Guia.
Para alguns restaurantes, manter as suas Estrelas com o passar dos anos é uma conquista gratificante, especialmente quando há mudanças de chefs e de equipas, que trazem distintas personalidades para a cozinha e para a sala. A 30 quilómetros de Lisboa, a Fortaleza do Guincho, em Cascais, é um exemplo notável: conquistou a sua Estrela em 2002 e tem-na mantido nesses mais de 20 anos. Localizado no hotel homónimo, num edifício portentoso com interiores preservados do século XVII, o restaurante evoluiu de uma cozinha mais clássica para uma em que os produtos portugueses ganharam mais destaque à mesa, tornando-se um celeiro para muitos chefs famosos do país.
Por ali passaram nomes como Vincent Farges, José Avillez, António Galapito, Miguel Rocha Vieira, entre outros. O atual chef do Guincho, Gil Fernandes, tinha apenas 28 anos quando assumiu o comando do restaurante. “Desde o começo, sentia a responsabilidade que era estar à frente desta cozinha, mas também um bocado de confiança, porque sabia que me tinha formado numa boa escola”, afirma. Para Fernandes, o Guincho tornou-se um celeiro de chefs por apostar na qualidade dos produtos e das técnicas, permitindo que os cozinheiros que trabalharam no restaurante aprendessem da melhor forma. “É bonito poder manter esta história [com o Guia MICHELIN] que começou muito antes de mim. Mas agora tenho a honra de poder continuar, mostrando o meu trabalho”, conclui.
Novos caminhos
Ao longo dos anos, muita coisa mudou. Alguns restaurantes anteriormente distinguidos fecharam ou deixaram de constar no Guia, como consequência dos novos rumos tomados pela gastronomia portuguesa, sempre em transformação. Outros, no entanto, mantiveram-se como referência em edições posteriores e até aos dias de hoje. É o caso do Tia Alice, que sempre causou peregrinações à religiosa cidade de Fátima. Distinguido com uma Estrela MICHELIN em 1993 e atualmente na categoria de Recomendados pelo Guia, o estabelecimento continua a primar por uma cozinha de excelência.Sem dúvida, o Guia MICHELIN consolidou-se como um verdadeiro selo de qualidade, reconhecendo restaurantes que oferecem uma experiência gastronómica diferenciada. A avaliação centra-se na qualidade dos produtos, no domínio técnico, no equilíbrio de sabores, na criatividade e na personalidade dos chefs, bem como na consistência ao longo do tempo. Para garantir este rigor, o Guia conta com uma equipa de inspetores que visitam, de forma anónima e independente, uma seleção de restaurantes previamente identificados, explorando territórios à procura das melhores ofertas gastronómicas e hoteleiras, tanto para os viajantes como para os residentes.
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Nos últimos anos, o Guia MICHELIN expandiu-se para novos territórios, estando agora presente em mais de 40 países e três continentes, incluindo Europa, Ásia e América. Em Portugal, uma nova fase começou em 2024, com um Guia e uma Gala próprios, abrindo caminho para os novos capítulos de uma história que começou há muito tempo, mas que ainda tem muito por explorar.
“Há um desenvolvimento muito interessante da cozinha portuguesa. Talvez o crescimento nos próximos anos não seja tão rápido como o que aconteceu em uma década, mas vejo muito potencial e fico orgulhoso”, diz o chef Hans Neuner, do restaurante Ocean, no Algarve, com duas Estrelas MICHELIN. “Quanto mais restaurantes de primeira linha, mais jovens chefs treinados teremos, o que significa que acabarão por abrir os seus próprios restaurantes, o que representaria uma evolução para a cozinha do país”, conclui.
No próximo dia 25 de fevereiro, esta história continuará a ser escrita na Gala do Guia MICHELIN 2025, que terá lugar no Centro de Congressos da Alfândega do Porto. Este evento será mais um marco na evolução da gastronomia portuguesa, celebrando a excelência que o país projeta no cenário mundial.
Imagem de capa: Prato do Vila Joya, o restaurante português que há mais tempo detém duas Estrelas MICHELIN © Vila Joya/Vila Joya