Gastronomia sustentável 5 minutos 20 Agosto 2024

Il Gallo d'Oro: sustentabilidade da horta ao mar

A cozinha do chef Benoît Sinthon, reconhecida com duas Estrelas MICHELIN e uma Estrela Verde, tem foco nos produtos que só o clima privilegiado da ilha da Madeira pode oferecer.

Boa parte do menu do Il Gallo d’Oro, o restaurante situado no hotel The Cliff Bay, na ilha da Madeira, é definido a 3,5 quilómetros da sua cozinha. É na horta biológica de cinco hectares, mantida na zona de São Martinho, que os pratos que serão servidos aos 34 comensais no jantar de cada noite começam a ser pensados. “Sempre que eles veem que há alguma coisa que me entusiasma, ligam logo para dizer: ‘chef, precisas ver isto!’”, conta Benoît Sinthon, que há 20 anos comanda o estabelecimento localizado no Funchal, galardoado com duas Estrelas MICHELIN e, desde 2022, também com uma Estrela Verde pelas suas práticas sustentáveis.

“Eles”, aos quais o chef se refere, são Richard Gonçalves e Leonel Abreu, os responsáveis por plantar, cuidar e colher as dezenas de espécies que nascem nesta área em meio ao perímetro urbano madeirense. Pelas mãos dos dois, saem do solo cenouras multicoloridas, beterrabas, curgetes, tomates de todos os tamanhos e formas ou espargos verdes de sabor levemente adocicado. “Tentamos fazer o mais simples possível, trazendo para a horta as técnicas que os antigos tinham para que tudo seja o mais saboroso possível”, diz Gonçalves, especialista em agricultura biológica que trabalha na terra desde criança, quando chegou à Madeira vindo da Venezuela com os pais, retornados ao país natal. “Comecei talvez com uns seis anos a ajudar os meus avós, então conheci isto a partir dos métodos tradicionais, sem qualquer uso de químicos”, lembra. É assim que tenta encaminhar os conhecimentos que adquiriu no decorrer dos anos, entre estudos e visitas a projetos de referência em agricultura regenerativa. “Quando sabes que o teu trabalho está num restaurante com duas Estrelas MICHELIN, o teu currículo até valoriza mais”, gaba-se.

Horta do restaurante © Il Gallo d'Oro
Horta do restaurante © Il Gallo d'Oro

O seu colega de trabalho e de ideologia da terra nasceu na Madeira, a poucos quilómetros dali. Para Abreu, a qualidade do produto que conseguem ali não tem preço, principalmente a nível de sabor. “Acho que há uma questão de orgulho madeirense em saber que a ilha produz boa comida, bons produtos. Basta provar um tomate daqueles [diz, apontando para uns pequenos tomates amarelos sobre a mesa] e os que vêm do continente para cá. Não tem nada a ver”, diz com o acento madeirense a reforçar o orgulho. São dezenas de tipos de alimentos que se podem lavrar ali, graças ao solo fértil e ao clima amigável a muitos tipos de cultivos. “Fazemos o nosso trabalho para deixar que as coisas [que plantamos] possam convencer as pessoas por si mesmas”, acrescenta.

O chef Benoît Sinthon na horta © Il Gallo d'Oro
O chef Benoît Sinthon na horta © Il Gallo d'Oro

Da horta ao prato

O chef Benoît já estava convencido desde o começo, quando a ideia da horta finalmente ganhou forma em 2016. Ele sempre quis que fosse um espaço “de verdade”, como diz, que lhe permitisse ter “mais do que hortaliças”. Hoje, boa parte do que cozinha no menu de degustação do Il Gallo d’Oro vem deste espaço, com duas entregas grandes por semana. “Quando falta algo na cozinha, ou quando eles me ligam para dizer que têm algo especial para mim, venho a correr”, ri-se. Muitos dos pratos são desenvolvidos a partir da programação da horta para aproveitar o que de mais fresco há em cada estação: tomates, espargos, feijão-verde e outros produtos agora no verão, por exemplo. “Queremos respeitar os ciclos e os tempos. Ter o produto no seu melhor momento é um verdadeiro luxo”, afirma o chef. “Há vezes que os ingredientes nem duram toda a semana e precisamos adaptar com novas versões. É a natureza que afinal dita o que estamos a servir”, completa.

Atualmente, o menu inclui mais vegetais como protagonistas, o que tem sido apreciado pelos clientes. A horta produz dezenas de variedades, usadas não só no Il Gallo d'Oro, mas também noutros restaurantes do grupo. A filosofia é sempre maximizar o uso da matéria-prima, garantindo que o gastronómico seja a prioridade. As frutas, um dos grandes diferenciais do clima madeirense, também são aproveitadas ao máximo no menu: goiaba, pitanga, manga, entre outras, acabam por ter mais protagonismo nas criações de Benoît. “Seria um absurdo não aproveitar todo o potencial de sabores naquilo que servimos”.

Os sabores da horta sobre a mesa © Il Gallo d'Oro
Os sabores da horta sobre a mesa © Il Gallo d'Oro

Peixes do entorno

A frase ressoa também para além da horta. Os pratos destacam as espécies que vivem nas águas do arquipélago, como o peixe-espada, a cavala e as lapas. O chef trabalha diretamente com pescadores que conhecem as suas necessidades, que focam na pesca de linha ou em outras técnicas sustentáveis (como evitar as redes de arrasto), que se dedicam a variedades de peixes e mariscos da região e que respeitam as épocas de defeso. “O nosso foco é o peixe selvagem, ainda que, eventualmente, nem sempre da Madeira. Mas não faz nenhum sentido eu servir um linguado, por exemplo, que é um peixe que não há nos arredores. Quero que os meus clientes venham ao restaurante e percebam que não estão em Lisboa nem no Algarve. Este sentido de localidade é importante para nós”, afirma o chef.

O mar e a horta sobre a mesa © Il Gallo d'Oro
O mar e a horta sobre a mesa © Il Gallo d'Oro

A ilha dentro do copo

A questão da culinária local perpassa outras áreas do restaurante, como o próprio programa de bebidas, que inclui vinhos feitos no arquipélago, claro, mas também a produção de sidras. Benoît criou um rótulo exclusivo em parceria com a Quinta da Moscadinha, uma das mais premiadas da ilha, localizada na Camacha, que trabalha com maçãs e frutas de variedades autóctones da Madeira. “É uma parceria bonita poder oferecer a quem nos visita algo que foi criado aqui, a poucos quilómetros do restaurante”, diz. Na última edição da gala da Guia MICHELIN Portugal (a primeira em que o país contou com um guia independente da Espanha), o sommelier do Il Gallo d’Oro, Leonel Nunes, foi reconhecido pelo seu trabalho com o prémio Sommelier Award.

Sommelier Leonel Nunes do restaurante © Il Gallo d'Oro
Sommelier Leonel Nunes do restaurante © Il Gallo d'Oro

Uma horta ainda maior

Tantas conquistas no último ano tiveram de ser celebradas, como conta o chef, em meio à horta. “Logo após a premiação, em que renovámos as duas Estrelas e a Estrela Verde, reunimos toda a equipa cá, abrimos um champanhe e metemos o trator em cima da mesa para tirar uma foto com todos”, Benoît relembra. “Muito do trabalho que fazemos no restaurante começa aqui, então o nosso diretor achou que fazia sentido que este fosse o palco da nossa comemoração”, diz. A horta tornou-se tão importante para o restaurante que há planos de que o hotel possa ampliar a sua atuação num novo espaço com ainda mais hectares.

Para a nova horta, Gonçalves e Abreu têm planos de reproduzir um manejo mais agroflorestal, para conseguir adaptar-se às altas temperaturas que já são percebidas na ilha — historicamente considerada de clima mais ameno, entre os 15 e 25 graus. Nos últimos anos, eles relatam que tem sido difícil cultivar algumas espécies pelo calor ou pela forte incidência solar, e que árvores e arbustos plantados entre os cultivos podem ser uma boa solução. “Vai ser cada vez mais preciso adaptar-se. Os arbustos e pequenas árvores ajudam a oferecer sombra para que as plantas não precisem de tanta água”, diz Gonçalves. “Já sentimos a diferença no crescimento das culturas por causa das mudanças no clima”, explica. Hoje, eles criam formas de irrigação e utilizam a palha de cana-de-açúcar que é descartada para criar coberturas ao redor dos cultivos, de forma a manter uma maior humidade do solo.

Benoît Sinthon na horta © Il Gallo d'Oro
Benoît Sinthon na horta © Il Gallo d'Oro

Uma revolução no que entendemos por sustentabilidade

O trabalho, entretanto, exige outras etapas que acabam por mudar aos poucos a rotina do próprio restaurante. Há, na horta, um espaço para a compostagem, em sintonia com os descartes de orgânicos feitos no Il Gallo d’Oro, que ajudam a alimentar os compostos. Essa separação de resíduos também criou uma outra consciência sobre o lixo, e o hotel espera nos próximos anos livrar-se de todo o tipo de plástico nas suas instalações. “Com a horta, todos os vegetais chegam à cozinha em caixas que vão e voltam, sem necessidade de embalagens. É uma mudança significativa se pensarmos na quantidade de produtos que entram num restaurante todos os dias. Temos aplicado a mesma filosofia com outros fornecedores, para diminuir os descartes. A horta foi importante para mudarmos a nossa relação com tudo o que entendemos por sustentabilidade”, conclui o chef Benoît. Uma lição que começou a ser plantada há oito anos e que tem dado bons frutos.

O respeito ao meio ambiente está presente em cada proposta do restaurante © Il Gallo d'Oro
O respeito ao meio ambiente está presente em cada proposta do restaurante © Il Gallo d'Oro

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Foto de capa: Mais vegetais como protagonistas no menu do restaurante © I’ll Gallo d’Oro

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