Quando a chef Marlene Vieira subiu ao palco da Gala MICHELIN Portugal 2025 para vestir a jaleca e receber a Estrela concedida ao seu restaurante Marlene,, a plateia não disfarçou o entusiasmo: aplausos e assobios ecoaram entre os presentes. Este momento era aguardado com expectativa, mas ninguém ansiava tanto por ele quanto a própria Marlene, que, com a voz embargada, agradeceu emocionada o galardão — para ela, mais do que um objetivo final, um reconhecimento de anos de esforço: “um sonho tornado realidade”.
A chef vê a distinção conquistada como um marco na sua carreira, mas destaca, sobretudo, o apoio e o incentivo das pessoas à sua volta. Antes de descer do palco, porém, deixou um recado para uma das suas subchefes, que havia sido mãe recentemente: “Marcela, tenho muito orgulho por não teres desistido e não seria igual sem ti na nossa equipa. Por isso, continua. A todas as mães cozinheiras, não desistam!”, declarou. As palavras de Marlene geraram palmas entre os convidados e evidenciaram as dificuldades de conciliar a vida familiar com o trabalho na alta cozinha.
A rutura de um jejum de quase 30 anos
Marlene Vieira não foi a primeira mulher à frente de um restaurante estrelado no país. Esse reconhecimento histórico aconteceu em 1993, com o Tia Alice, em Fátima, propriedade da mítica Maria Alice Marto, distinguido com uma Estrela MICHELIN até 1996. No entanto, Marlene é a primeira chef e proprietária de um estabelecimento com uma Estrela em Portugal em quase três décadas — um reflexo da disparidade de género que ainda persiste na gastronomia mundial. “Eu sabia que, se um dia ganhasse esta Estrela, ela seria muito maior do que eu.”, diz.Ainda há um longo caminho a percorrer, segundo Marlene, mas a chef já vê com mais otimismo as pequenas transformações no setor. Na própria Gala do MICHELIN, sentiu satisfação ao ver mais mulheres no palco, como Teresa Pinho Cruz, chef residente do Seixo by Vasco Coelho Santos, novo restaurante Recomendado, localizado em Tabuaço, e Rita Magro, responsável pelo Blind, no Porto, também distinguido com uma Estrela nesta edição do Guia MICHELIN. “Tenho visto cada vez mais mulheres nas cozinhas, em posições de chefia, o que é um alento”, afirma.
Uma trajetória de vitórias e desafios
Com uma carreira de mais de duas décadas, Marlene sabe que as oportunidades começam a ser mais frequentes do que eram quando iniciou na alta gastronomia. Recorda, com certa mágoa, que, ao ficar grávida, teve de escolher entre ser mãe ou ser chef. “Lembro-me de que fui a uma entrevista de trabalho com a minha filha de seis meses ao colo. E as perguntas eram sempre: ‘Como vais conciliar o trabalho com a tua família?’ Era quase impossível que uma mulher pudesse ser ambas as coisas”, conta. Foi por isso que quis relembrar à sua cozinheira Marcela que teria sempre o seu lugar no restaurante. “Espero que as mulheres percebam que é possível sair da sombra dos homens e fazer o seu próprio caminho”, diz a chef, apelando às mulheres para confiarem em si mesmas e não se subestimarem.A história de Marlene na cozinha começou cedo, aos 12 anos, num restaurante para o qual o seu pai fornecia carne. Mais tarde, formou-se na Escola de Hotelaria de Santa Maria da Feira, trabalhou em Nova Iorque, passou por fogões de diferentes estabelecimentos portugueses e logo decidiu empreender. Abriu os seus próprios negócios, como os vizinhos Zunzum Gastrobar e o Marlene,, este último inaugurado em 2022.
O recentemente galardoado Marlene, em Lisboa, oferece um ambiente contemporâneo, com uma cozinha central aberta, rodeada por um balcão que permite assistir à coreografia dos cozinheiros a trabalhar. Em conjunto com a sua equipa, Marlene defende uma proposta de autor baseada em dois menus de degustação, com influências da tradição portuguesa e de sabores internacionais, acompanhados sempre por uma deliciosa broa de milho, antiga receita da sua avó.
Rita Magro: protagonismo feminino na alta gastronomia portuguesa
Rita Magro, do restaurante Blind, situado no hotel Torel Palace Porto, também celebra a crescente presença feminina na gastronomia. A chef reconhece que há um aumento no número de mulheres à frente de restaurantes, mas que ainda há espaço para muitas mais. Com base na sua experiência pessoal, acredita que algumas mulheres podem temer a exposição, um obstáculo que ela própria teve de superar: “A mim ainda me custava um pouco ser o centro das atenções, mas agora faço-o com muito mais naturalidade”, confessa. “A cozinha exige muito tempo e dedicação para evoluir. E tenho visto mais mulheres a trilhar esse caminho, o que é muito positivo.”Para Rita, fazer parte do Guia MICHELIN era um objetivo especial na sua carreira: “Sempre olhei para o Guia com muito respeito e carinho. Ambicionava trabalhar num restaurante com Estrela e até levar o meu próprio restaurante a esse nível”, afirma a chef, que no ano passado também recebeu o Prémio MICHELIN Jovem Chef em Portugal.

Sob a supervisão do chef Vítor Matos (também responsável pelo Antiqvvm e Oculto), o Blind presta homenagem ao livro Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago. A experiência desafia os cinco sentidos e, se aceitar o convite, o cliente pode provar pratos contemporâneos com texturas refinadas e apresentações cuidadas, enquanto está de olhos vendados.
Ao trabalhar diariamente na cozinha, Rita sente o peso da consistência e da evolução contínua que impulsionam o restaurante. Para ela, vivemos tempos em que as mentalidades estão “mais abertas a ver mulheres em cargos de poder, comparativamente ao passado. Portanto, acho que estamos no caminho certo”, afirma, salientando que as mulheres ainda enfrentam obstáculos acrescidos. “Claro que para mim é um motivo de orgulho ser uma das mulheres num restaurante com Estrela MICHELIN, décadas depois”, conclui. “Na verdade, gostava mesmo que houvesse muitas mais.”
Foto de capa: Marlene Vieira, na Gala do Guia MICHELIN 2025 © MICHELIN