Você pode ser fã inconteste da autêntica feijoada completa e ainda assim deixar de lado algumas carnes que lhe dão gosto e textura, como língua e orelha. Também pode ter se recusado a comer fígado de boi na infância, apesar da insistência da mãe e da avó. Não se sinta só: num país de rebanho bovino abundante, é compreensível que se incentive o consumo da picanha e do filé mignon, em vez do rim do animal.
O que nem todos sabem é que o aproveitamento dos órgãos internos dos animais, que na culinária são chamados de miúdos ou vísceras, formaram a identidade de muitas culinárias regionais. Eles são, sobretudo, nutritivos, mais ricos em ferro e vitaminas do que as carnes mais comuns que consumimos.
Como a necessidade é a mãe da invenção, a espécie humana consumia vísceras de forma democrática desde os primórdios da civilização -- abater um animal de grande porte mobilizava toda uma aldeia, e todo ele deveria ser aproveitado. Parte da carne animal era consumida imediatamente, em fogo aberto, e outra parte era conservada para o apetite de amanhã. É assim que surgiram os embutidos, por exemplo, a partir da trituração e da conservação, com sal e temperos, de carnes de diversos tipos, amarradas às tripas de animais (hoje, usam-se membranas sintéticas e muito menos gordura e sal no processo).
Viajar pela área rural de países como França, Espanha, Portugal e Alemanha, para ficar apenas nas culinárias mais emblemáticas, provoca um choque cultural: em algumas regiões, os órgãos internos dos animais são incensados como iguarias.
Basta lembrar da fama universal do foie gras, que nada mais é que o patê natural formado no fígado de gansos, patos e marrecos que passam por intenso processo de engorda, antes de serem abatidos.
Apreciado desde o Império Romano, o foie gras é um prato típico de Estrasburgo, na França, mas viajou o mundo todo nos restaurantes e bistrôs de acento francês fora do país de origem.
Novas técnicas de engorda e produtores atentos ao bem-estar do animal têm reescrito a história do foie gras no mundo, em resposta à discussão a respeito da sobrenutrição das aves.
De todo modo, o fígado gordo é apenas um dos miúdos célebres da gastronomia. A culinária “offal” (termo em inglês para vísceras) tem ganhado importância no cardápio de restaurantes brasileiros.
No Tordesilhas, Bib Gourmand de São Paulo, Mara Salles sempre serviu uma rica rabada - rabo de boi e tutano também são considerados miúdos - e a feijoada completa com orelha, rabo e língua, como se deve.
O AE! Cozinha, Bib Gourmand de Ygor Lopes, oferece patê de fígado de galinha no couvert. Ygor conta que deixa o fígado em leite durante uma noite. No dia seguinte, lava-o em água corrente e o processa com uma redução de bebidas (vinho do Porto, conhaque, cachaça, alho e tomilho). Em seguida, acrescenta ovos e verte um fio de manteiga derretida lentamente no liquidificador, para emulsionar como maionese. Depois, assa o fígado para dar firmeza e o serve com pães.
Mas é no Mocotó que Rodrigo serve a famosa dobradinha: tirinhas de rúmen (primeira câmara do estômago dos ruminantes, também conhecido por pança ou bucho) cozidas com linguiça defumada e feijão branco e o sarapatel, um prato de origem portuguesa muito consumido no Nordeste do Brasil.
Pronto para encarar?