Nunca subestime o poder de uma boa marinada! Numa definição simples, marinar é transferir aromas e sabores para grandes porções sólidas de alimento, sem o uso do fogo.
A cozinha brasileira faz marinada o tempo todo: o que seria o limãozinho antes de fritar o frango e o peixe? Marinada, pura e simples.
Há dois tipos de marinadas: a seca e a úmida. É possível impregnar a superfície de um corte de carne, por exemplo, com uma pasta de temperos. O desafio é transportar esses sabores para o interior. Além disso, nesse tipo de marinada, a superfície do alimento pode ficar temperada demais. Funciona, mas vale ter atenção.
Outro modo de conferir sabor aos alimentos é a marinada úmida - como o limãozinho no peixe - feita com um líquido ácido (vinagre, vinho, sucos cítricos) ou óleo. Uma vantagem da marinada úmida é que, além de criar sabor, ela é capaz de amaciar e umedecer os alimentos, especialmente se for feita a partir de um meio ácido. Assim, antes mesmo de ser cozido no fogo, ele já vai ganhando sabor e textura tenra - é uma espécie de pré-cozimento.
O Guia MICHELIN Brasil conversou com três chefs sobre essa técnica, cujas origens remontam à Renascença. Como quase tudo na gastronomia, a ideia original era preservar alimentos, atrasar sua deterioração.
Vácuo ajuda
Chef do Evvai, Luiz Filipe Souza explica que marinadas não funcionam só para carnes. Ela é excelente, inclusive, com legumes. Um dos pratos mais icônicos do uma estrela MICHELIN de São Paulo é o alho-poró confitado com leite de avelãs e extrato de alho-poró grelhado. “Este prato começa com uma marinada com sálvia. A gente leva a parte que não se come do alho-poró para assar e infusionar, depois processa e cria um caldo a partir do processado. E marina os talos de alho-poró nesse processado, por duas horas”, explica Luiz.
O alho-poró do Evvai. Foto: Tadeu Brunelli/Divulgação
Uma técnica que o chef usa muito é a marinada de alimentos embalados a vácuo. “Quando a gente suga o ar de dentro da embalagem, acaba forçando o líquido da marinada a ‘entrar’ dentro da carne e do vegetal. Isso acelera o processo e permite uma marinada mais uniforme”, ensina.
Para Luiz, o aroma ácido, às vezes, tem intenção de mascarar algum defeito real do alimento - ou algo que culturalmente se convencionou chamar de defeito, como atenuar o cheiro forte de peixe fresco. “A gente tem costume de achar o cheiro do peixe estranho e coloca limão para camuflar um gosto que parece não tão bom. No restaurante, escolhemos bons peixes e evito, nesse caso, marinar, para valorizar o produto que oferecemos.”
Marinadas precisam de tempo, “dormir na geladeira”. É antagônico, mas faz sentido: para “acelerar” o efeito do fogo depois, amaciando e transportando sabor, começa-se o processo fora dele, durante horas. Luiz, a propósito, não usa legumes crus na marinada. Costuma picá-los e cozê-los antes, para extrair o máximo de sabor. Vale lembrar: nas marinadas mais complexas e longas, não se usa sal.
Vinho poderoso
Vinhos mais estruturados são os melhores para marinadas, segundo Luiz Filipe e Didier Labbé, do Didier, Bib Gourmand do Rio de acento francês. O clássico boeuf bourguignon servido na casa é feito com cupim marinado por 24 horas no vinho tinto (de preferência um exemplar da Borgonha) com aipo, cebola, cenoura (a trinca que forma o mirepoix, base de sabor de um tipo de culinária francesa) e talo de salsão. No dia seguinte, a carne é cozida em panela comum por duas horas, com acréscimo de caldo de carne e na própria marinada.
Boeuf bourguignon, do Didier Restaurante. Foto: Felipe Archer/Agência Maré
Uma das estrelas do cardápio do Didier é fettuccine acompanhado de coelho assado e desfiado. Carne mais delicada, ela ganha sabores com mais facilidade. Antes de levar ao fogo, o chef marina o coelho cortado em pedaços por cerca de 4 horas, também em vinho tinto e com o mirepoix.
Mistura oriental
Na cultura japonesa, a marinada também é lei. “Em nosso caso, aqui no Kuro, usamos a marinada para trazer sabor para a carne. É um processo que transforma dentro e fora, em pratos que depois são cozidos”, afirma Gerard Barberan.
A barriga de porco marinada, servida em um pão chinês, no Kuro. Foto: Divulgação
Uma solução de salmoura (10% de sal marinho do total de água) e temperos também é usada, no caso de o chef precisar preparar uma quantidade maior de barriga de porco, com os mesmos temperos.
Buta no kakuni, preparo tradicional nas casas japonesas que servem comida quente, consiste em barriga de porco cozida em dashi, shoyu e saquê. No Kuro, O Prato MICHELIN de São Paulo, a carne é marinada por 12 horas em gengibre picado, alho descascado e sumo de laranjas.