Fique por dentro 2 minutos 12 Novembro 2020

O segredo das grandes receitas

Um inspetor do Guia MICHELIN do Reino Unido compartilha suas experiências e revela qual o melhor prato que já provou.

O que faz com que uma receita seja considerada extraordinária? O que transforma o trivial em sublime? Em primeiro lugar, ingredientes de qualidade. Você pode ser o chef mais talentoso do planeta, mas, se seus ingredientes não os melhores, sua comida também não será. E isso não quer dizer que devam ser itens de luxo: trata-se simplesmente de usar o que há de melhor na estação. Experimente um tomate na época certa do ano, por exemplo, e você se lembrará do quão maravilhoso é esse vegetal. Quando os ingredientes são realmente saborosos, meio caminho já foi percorrido.


O equilíbrio é também um aspecto vital, e é por isso que os chefs devem sempre comer sua própria comida. Para nós, inspetores, fica evidente quando provamos o prato de um chef que não vem. E não estou me referindo a apenas experimentar o prato durante a preparação, mas sentar-se e saborear o prato final como se fosse um cliente. É nesse momento que eles vão descobrir se todos os elementos estão em harmonia. Algumas receitas são ótimas nas primeiras garfadas, antes de você perceber que há muito disso, não o suficiente daquilo ou que tudo é dominado por um sabor mais forte, que se sobrepõe aos demais. Um prato realmente especial é aquele que você quer que nunca termine.


Criatividade e habilidade também são fatores importantes, obviamente. Podemos dar os mesmos ingredientes a dois chefs, para o preparo de um mesmo prato - e um sempre será melhor que o outro. Às vezes, a diferença é óbvia: algo um pouco cru ou cozido demais, tempero em excesso, alguma falha técnica ... Mas, às vezes, uma receita simplesmente é melhor do que a outra. E é difícil explicar por quê.


É nesse momento que a cozinha deixa de ser uma ciência e passa a ser arte. Dito isso, criatividade e conhecimento nunca devem ser confundidos com complicação. Raramente, os pratos ficam por serem mais elaborados. Comida boa não se trata de um chef mostrando o quão inteligente ele é ou classificações técnicas domina. Trata-se de criar algo exclusivo prazeroso de se provar.


Outro aspecto importante, especialmente para nós do Guia MICHELIN, é consistência. Nada é mais frustrante do que pedir um prato favorito e descobrir que já não é mais tão bom quanto costumava ser. Há muitos chefs talentosos que são capazes de cozinhar à altura de uma estrela MICHELIN, mas se eles não cozinham com consistência - todos os dias, em todas as fontes de seu menu -, nós simplesmente não premiamos o restaurante. Não podemos adicionar uma observação à estrela, dizendo “escolha somente tais pratos” ou ainda “a especialidade da casa nem sempre é boa”.


Eu tive o privilégio de saborear muitos pratos sublimes ao redor do mundo. E com frequência, me perguntam qual foi a melhor coisa que já provei. Pois bem ... Foi uma singela manga fatiada, servida em um prato branco, num restaurante de tempurá, com duas estrelas, em Tóquio. Ela finalizou uma refeição e foi o contraponto perfeito para a gordura do tempurá. Sim, um manga em si estava espetacular (era uma manga Miyazaki), em perfeito estado de maturação e na temperatura ideal. Foi simplesmente uma das melhores frutas que comi na vida. Isso mostra que as habilidades de um chef vão além da mera preparação das receitas. Sinceramente, para mim, estragou manga para sempre, porque, desde então, todas as outras me decepcionaram.


Nos tempos de quarentena, muita gente descobrindo o prazer de cozinhar. Eu perdi a conta da quantidade de fotos lindas que vi nas redes sociais. Se Mike Leigh algum dia fizer a continuação de “A Vida É Doce” (filme britânico, produzido em 1990), já tenho todo o material que ele precisa. 


Seja qual for o visual de um prato nas redes sociais, a gastronomia trata mesmo de só uma coisa: sabor. É como observar uma pintura de Mark Rothko e sentir aquele golpe visceral - você realmente precisa estar lá. Nas semanas de isolamento, passei horas e horas imaginando como seria voltar a dar a primeira garfada em um prato fornecido sublime.


Escrito pela equipe editorial do Guia MICHELIN do Reino Unido.

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