O computador e as planilhas substituíram o papel e a caneta? Nem sempre. Pelo menos na cozinha, até entre os que praticam uma gastronomia mais moderna, poucos abandonaram métodos mais analógicos de se trabalhar. O mero ato de rabiscar ou rascunhar uma ideia é motor criativo na hora de pensar em receitas, entre os chefs ouvidos pelo Guia MICHELIN Brasil.
Pier Paolo Picchi, chef do Picchi, uma estrela MICHELIN de São Paulo, é conhecido por destilar suas reminiscências da culinária italiana através de um filtro moderno. Hoje, por exemplo, consulta até as redes sociais para ajudá-lo a pensar e ter novas ideias. Mas jamais chegou a abandonar a leitura em papel: segue consumindo muito livro e revista de gastronomia para se inspirar. E não abre mão de um caderninho de anotações junto ao travesseiro: já lhe veio muita ideia durante os sonhos e tem receio de perdê-las.
A extrusora para massas que Pier Paolo Picchi usa no Picchi. Foto Divulgação
“Às vezes, é no sonho que descubro como combinar os ingredientes, acredita? Não digo que venha uma ideia de prato, mas um ingrediente, ou uma combinação de sabores”, revela o chef, que é da turma dos que rabiscam ideias para depois aprimorá-las.
Nos cadernos da avó, que sempre cozinhou muito, encontra e replica várias receitas. Da primeira vez que reproduz o preparo, segue sempre a receita à risca; se achar que funcionou, inclui o prato no cardápio do restaurante. Senão, tenta elaborar algo mais moderno e adaptar a receita, que é, então, transferida para um bloco seu, “num caderninho de folhas rasgadas”, como ele mesmo diz.
Além das anotações da avó de 95 anos, que nasceu em Lucca, na Itália, e vive com ele, Pier trabalha também com uma extrusora herdada da tataravó, uma máquina que funciona como uma prensa para massas longas, feito espaguete.
“As fichas técnicas a gente faz pelo computador, não tem como fugir. Mas não arquivo tudo que sirvo. Meu menu-degustação é quase semanalmente mudado, então a cabeça viaja muito rápido, muita coisa não fica registrada em ficha”, confessa.
Kuro, O Prato MICHELIN de culinária japonesa de São Paulo, é tocado por um espanhol que já viveu em lugares como Ibiza, Barcelona e Abu Dhabi. Antes de aportar em São Paulo, em 2018, Gerard Barberan já tinha começado a digitalizar receitas. É dos que abraçaram a vida "na nuvem", digamos assim.
Até mesmo as ideias iniciais, ainda vagas e desordenadas, são anotadas no bloco de notas do celular ou em telas salvas no computador. “Qualquer coisa é útil para não esquecer, né?” diz ele, com bom humor.
Gerard prefere concentrar as coisas no formato digital desde que descobriu, em 2014, um programa de gestão de cozinha. É nele que guarda muitas das antigas receitas que elaborou na Espanha e no Oriente Médio, revisitadas de quando em quando para atualizações.
Já as comidas longevas, que Gerard carrega como herança de família, vão todas na cabeça, no coração e nas mãos -- acaba reproduzindo muitas pela lembrança dos gestos de parentes e amigos.
Luiz Santos do Maria e o Boi. Foto Divulgação
O chef Luiz Santos, do Maria e o Boi, Bib Gourmand do Rio, adora livros de gastronomia e receitas antigas de família, registradas em papel. “Essa parte ainda tem um apelo analógico para mim”, conta ele.
Anotações de Luiz Santos do Maria e o Boi. Foto Arquivo-Pessoal
Agora, para criar novas receitas, vive um período de pesquisa, em que começa a escrever e desenhar, em caderno, as inspirações e formas do prato que pretende servir, o que ajuda a defini-las conceitualmente.
“Os próximos passos já são todos digitais. A confecção da ficha técnica, tanto de produção quanto de custo, e a análise do prato dentro do menu, são feitas em planilhas. Elas ajudam muito a olhar para o que a gente faz, de um ângulo mais focado no negócio”, explica o cozinheiro.
Luiz acha que as receitas não devem ser guardadas como se fossem segredos absolutos. Ele mesmo, sempre que pode, busca receitas de chefs que admira, e gosta de pensar no que faria de igual e no que faria de diferente, para que fossem executadas do seu jeito.
“É difícil manter mistério hoje em dia, com a quantidade de fontes disponíveis. Não revelar as receitas é só uma forma de afastar as pessoas da cozinha”, acredita. Quanto mais gente demonstrar interesse, quanto mais pessoas reproduzirem o que você passa adiante, tanto melhor.