Notícias 3 minutos 20 Junho 2024

Um Guia MICHELIN na Segunda Guerra Mundial

Como um guia de viagem pode ter ajudado na Libertação da França em 1944? No dia 6 de junho de 2024, a Casa de Leilões de Clermont-Ferrand leiloou um raríssimo Guia MICHELIN de 1939. Reeditado nas vésperas do Desembarque pelos serviços secretos americanos, é possível que este livro tenha orientado os Aliados durante a Segunda Guerra Mundial.

Na Casa de Leilões de Clermont-Ferrand, todos tinham os olhos postos no lote 1: um Guia vermelho vintage de 1939 e, ao lado dele, um segundo exemplar também do mesmo ano. Curiosamente, a capa deste tem uma cor bege. O que explica esta rareza?

Entre entendidos, chamamos-lhe o guia “americano” ou a “guerra”. No mês do aniversário de 80 anos do desembarque dos Aliados na França, a obra ganhou um carácter bastante simbólico. Motivo: “Os estadunidenses teriam reeditado alguns milhares de exemplares em 1944”, entusiasma-se Bernard Vassy, o leiloeiro. Pouco antes de partirem para combater o inimigo nazi em França, a obra foi colocada nas mochilas dos oficiais americanos. Mas como este guia de viagens e de gastronomia podia ser útil aos Aliados que partiram para lutar pela libertação da França? Numa altura em que quase todos os restaurantes franceses estavam destruídos, fechados ou era impossível abastecerem-se?

© Hôtel des Ventes di Clermont Ferrand Vassy et Courtadon
© Hôtel des Ventes di Clermont Ferrand Vassy et Courtadon

Quando o Guia MICHELIN foi uma arma de guerra

“É claro que estes pobres soldados não faziam turismo”, recorda o especialista. Não eram as mesas com Estrelas que lhes interessavam. Em 1943, quando preparavam o desembarque no litoral francês, os Aliados procuravam um documento prático e fácil de transportar para ajudar os seus oficiais a orientarem-se, principalmente nas cidades francesas privadas de sinalização pelo inimigo. Problema: os mapas do Estado-Maior que possuíam tinham lacunas.

A pista de Gustave Moutet

A solução foi provavelmente fornecida por um suboficial francês, Gustave Moutet. Este resistente chegou à Grã-Bretanha em junho de 1940 e, em 1942, constatando a péssima qualidade dos mapas utilizados pelos Aliados, sugeriu a reprodução em fac-símile do Guia MICHELIN de 1939 que havia trazido com ele para distribuí-lo aos oficiais. O Estado-Maior dos Aliados contactou a MICHELIN, e os serviços secretos de Washington fizeram uma tiragem especial. A filha de Gustave, a jornalista Anne-Elisabeth Moutet, foi a primeira a contar esta história num artigo publicado no Sunday Times em 1984.

Bibendum GI. Extrato da revista interna «Bibendum News» americana de maio de 1984, num artigo que comemorava os 40 anos da Batalha da Normandia © L'AVENTURE MICHELIN (arquivos)
Bibendum GI. Extrato da revista interna «Bibendum News» americana de maio de 1984, num artigo que comemorava os 40 anos da Batalha da Normandia © L'AVENTURE MICHELIN (arquivos)

Um Guia mais preciso do que os mapas do Estado-Maior dos Aliados

O livro foi distribuído a todos os comandantes de unidades que deviam participar no desembarque do dia D devido à sua facilidade de utilização. O facto de as cidades francesas aí estarem classificadas por ordem alfabética e “a precisão que sempre prevaleceu na conceção dos mapas” fazem dele “um documento completo, fácil de compreender pelos não francófonos até durante os combates”.

Jérôme Mottier é Vice-Presidente da Association des Collectionneurs de Guides et Cartes Michelin (ACGCM), uma associação que reúne cerca de 300 entusiastas do Guia MICHELIN na França, Bélgica e Suíça. Ele afirma: “Eu tenho a sorte de possuir um exemplar desta famosa edição americana. Este livro foi uma mina de ouro para os Aliados: mostra o estado das estradas, a distância entre as estações de serviço, o peso das pontes, entre muitas outras informações.” 

© Hôtel des Ventes de Clermont Ferrand Vassy et Courtadon
© Hôtel des Ventes de Clermont Ferrand Vassy et Courtadon

Um Guia MICHELIN especial

Na França, “é o único Guia MICHELIN que não é vermelho!”, resume Bernard Vassy. “Os americanos modificaram a capa. Escolheram esta cor bege, neutra e discreta, sem dúvida porque uma capa vermelha teria dado muito nas vistas”. Os colecionadores informados também procurarão a menção no topo a indicar que se trata de uma edição para utilização militar (“For Official use only”). Também se lê “Reproduced by Military Intelligence Division War Department Washington”. Por outras palavras, é claramente indicado que se trata de uma reedição dos serviços secretos americanos.

“Este guia é muito mais grosso do que o guia vermelho original e também muito mais frágil”, explica Jérôme Mottier. “Como se pode ver, o papel é de pior qualidade, o que é expetável em tempos de guerra”. Embora o mistério em torno deste enigma esteja agora desfeito, “até agora ninguém sabe o número exato de reimpressões”, diz o entusiasta. “Talvez cinco mil, dez mil exemplares? Nunca saberemos, exceto se a informação chegue aos Estados Unidos e alguém, por milagre, tenha a resposta!

Uma raridade quase impossível de encontrar atualmente

O leiloeiro Bernard Vassy nos confessa, “em vinte e cinco anos de carreira, devo ter vendido seis ou sete exemplares. É muito mais difícil encontrá-lo que o Guia Vermelho de 1900, este já vendi quarenta exemplares.” Segundo ele, “É possível que alguns oficiais americanos sobreviventes tenham levado estas reedições para casa como recordação, mas a maioria deve ter sido deitada fora ou perdida após a Libertação.”

Um guia vendido por mais de 7500 euros

“Esta versão militar é o Santo Graal de qualquer apaixonado”, indica. Avaliada entre 5 mil e 7 mil euros, esta peça de coleção foi adquirida por um colecionador de Auvergne por 7584 euros. Para Bernard, “É uma loucura pensar que, oitenta anos antes, os primeiros oficiais do 2.º Batalhão de Rangers e das 1.ª, 4.ª e 29.ª Divisões de Infantaria desembarcaram na praia de Omaha... Com esta reprodução do Guia MICHELIN de 1939 nas suas mochilas.”

Entrega de mapas aos americanos, agosto de 44, n.° 1 © L'AVENTURE MICHELIN (arquivos MICHELIN)
Entrega de mapas aos americanos, agosto de 44, n.° 1 © L'AVENTURE MICHELIN (arquivos MICHELIN)

Durante a Segunda Guerra Mundial, a MICHELIN ajudou várias vezes o Estado-Maior aliado. Em concreto, forneceu secretamente milhares de mapas do norte e do leste de França, bem como da Bélgica.


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Imagem de capa: © Hôtel des Ventes de Clermont Ferrand Vassy et Courtadon

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