Fique por dentro 3 minutos 16 Agosto 2019

Atitudes sustentáveis na cozinha

Do uso de vegetais em formatos estranhos à utilização de restos de comida para fertilizar plantações, novas atitudes reacendem debate sobre sustentabilidade e desperdício dentro da cozinha

Sob a bandeira do grupo Les Amis, o restaurante Kausmo acaba de abrir no terceiro andar do Shaw Centre, em Cingapura. Mas não se trata de mais um endereço refinado, comandado por um experiente chef estrangeiro. Em vez disso, duas jovens millennials apostam em um menu-degustação inusitado, preparado com ingredientes “fora do padrão”, como frutas muito maduras e vegetais em formatos e tamanhos estranhos, que geralmente são descartados ao longo da cadeia produtiva.

Fundado pela chef Lisa Tang, 24, e por Kuah Chew Shian, 26, o novo restaurante tem a proposta de fomentar o debate sobre sustentabilidade e estilo de vida consciente dentro da cozinha, com destaque para o fim do desperdício.

O salão do Kausmo, que mais parece a sala de jantar da casa de um amigo, tem uma mesa comunitária de 16 lugares, com vista para a cozinha aberta. O menu-degustação de seis etapas tem inclinação asiática.


Prato do Kausmo, de inspiração asiática, feito com verduras provenientes da colheita do dia 

No curso de suas pesquisas, a dupla fez visitas a produtores locais para estudar sobre práticas agrícolas sustentáveis, e se reuniu com fornecedores para se aprofundar nas questões da cadeia de alimentos - a ideia é passar esse insights adiante através do Kausmo. “É mais fácil iniciar uma conversa quando todos estão reunidos em torno da mesa de jantar”, afirma Tang. “A comida é algo que transcende experiências e culturas e, por meio dela, podemos compartilhar ideias, além de abrir nossas mentes para o que é novidade”, complementa.

Com abordagem sutil, o trabalho de conscientização sobre sustentabilidade alimentar abrange toda a experiência gastronômica, do início ao fim. Isso inclui histórias sobre a origem dos ingrediente presentes em cada prato, a lojinha anexa de molhos e conservas preparados com o que sobra da despensa e o conteúdo envolvente de suas mídias sociais, como é o caso dos vídeos de receitas criativas que ensinam a aproveitar a totalidade dos produtos.

“Queremos nos tornar uma plataforma acessível para compartilhar questões sobre sustentabilidade e estilo de vida consciente”, afirma Kuah, ressaltando que a ideia é que os clientes levem essas ideias para fora do restaurante, inspirando a outras pessoas na comunidade. “Não se trata apenas do que um restaurante chique pode fazer, mas do que você pode fazer também dentro de sua própria casa”, complementa.

Fechando o ciclo

Antes de abrir o Kausmo, Tang passou nove meses trabalhando no restaurante Primo, nos Estados Unidos, que opera com o conceito “do campo à mesa”, ou seja, que planta seus próprios ingredientes. Foi assim que a chef tomou contato com a ideia de plantar a sua própria comida e canalizar o que seria desperdiçado de volta para terra em forma de adubo. Foi uma “quebra de paradigma” que mudou completamente a forma de Tang pensar sobre o fluxo de vida dos alimentos.

Embora o conceito de restaurante full-circle ainda não seja viável em Cingapura, a Edible Garden City, empresa de agricultura urbana local, vem caminhando a passos largos para fechar esse ciclo e possibilitar uma economia circular de alimentos na cidade.


Fachada da Citizen Farm, primeira fazenda de circuito fechado em Cingapura

Em 2017, a Edible City inaugurou a Citizen Farm, a primeira fazenda de circuito fechado em Cingapura, com nove mil metros quadrados de terras arrendadas pelo governo no bairro de Queenstown. Além de fornecer alimentos locais, frescos e sustentáveis - cultivados por meio de técnicas de agricultura urbana - para chefs e a comunidade local, a propriedade também canaliza as sobras de alimentos para nutrir o solo e as plantas. Por exemplo, as borras de café são convertidas em solo fértil para o cultivo de cogumelos.

Na mesma fazenda, a Edible Garden City trabalha em parceria com outra entidade agrícola local, a Insectta, na criação de uma espécie de mosca (Black Soldier Fly), cujas larvas alimentam-se principalmente de okara (polpa de soja) e restos de grãos provenientes da indústria cervejeira local. Dessa forma, esses subprodutos são convertidos em matéria orgânica rica em nutrientes, que é usada nos canteiros da Citizen Farm.

Desde abril, a empresa vem testando a construção de “fazendas” compactadas em contêineres de dois andares para levar a economia circular a propriedades residenciais. No futuro, se o plano for bem sucedido, cidadãos de Cingapura poderão comprar produtos locais com mais facilidade, além de reciclar seus restos de comida com maior comodidade.


Cogumelos cultivados em solo adubado com borras de café

Para perpetuar esse tipo de comportamento consciente e ecológico e mudar a mentalidade do público em geral, o criador da Edible Garden City, Bjorn Low, reconhece o poder da gastronomia: “espero recuperar atitudes e técnicas sustentáveis que se perderam como o atual modelo de comercialização de alimentos. Para isso, chefs têm se mostrado os melhores portavozes do conceito full-circle, pois transformam a teoria em pratos”.

Força comunitária

No restaurante Cure, em Keong Saik Road, inaugurado em 2015, o chef-proprietário Andrew Walsh mostra-se um defensor da redução do desperdício de alimentos - a mentalidade de desperdício zero em sua cozinha, aliás, é fiscalizada por cozinheiros experientes para garantir que não haja desperdício desnecessário. O cardápio do Cure é sazonal e prega a filosofia “da raiz à folha”, que utiliza todas as partes dos vegetais.

Para dar luz ao movimento dentro da comunidade de Keong Saik, no início do ano, Walsh convidou chefs e bartenders da vizinhança - do Neon Pigeon, Pasta Bar, The Guild, Burnt Ends, Butcher Boy, Gaston, Nicolas Le Restaurant e The Old Man Singapore - para falarem sobre desperdício de alimentos e sustentabilidade durante um jantar. Cada estabelecimento contribuiu com um prato feito a partir de ingredientes reaproveitados.

“Acredito que todo mundo já tenha pensado em um desses assuntos em algum momento, então um dos meus objetivos é incentivar o diálogo e construir uma comunidade para compartilhar histórias, experiências e contatos”, explica Walsh. Ele conta que as queixas comuns que surgiram durante o jantar foram a quantidade de embalagens consumidas nos restaurantes e a falta de infraestrutura para o descarte adequado de lixo orgânico e reciclável.


Chefs e bartenders reunidos no The Cure, em Cingapura, em jantar sobre sustentabilidade e desperdício de alimentos 

“Se conseguirmos repetir esses encontros a cada três ou quatro meses, manter a conversa viva e fortalecer a comunidade, quem sabe não avançamos na resolução desses problemas? Talvez outros grupos de restaurantes se inspirem e iniciem também sua própria comunidade. Com cada vez mais pessoas engajadas, talvez o governo crie mais esquemas e obtenha subsídios para apoiar a causa”, acredita Walsh.

E acrescenta: “agora, mais do que nunca, temos que levar a sustentabilidade a sério em Cingapura, e é aí que a comunidade entra: quanto mais braços tivermos, menos árduo será o trabalho. É hora de agir e consertar um pouco o planeta”.

No Brasil

Por aqui, a sustentabilidade também é assunto em voga dentro das cozinhas profissionais. Chefs de restaurantes indicados pelo Guia MICHELIN têm, cada vez mais, adotado iniciativas que visam diminuir os impactos ao meio ambiente, além de reduzir o desperdício de alimentos. Escolha de fornecedores locais e orgânicos, aproveitamento total dos ingredientes, preferência por produtos de limpeza biodegradáveis e água de reuso. Confira o que a gastronomia brasileira tem feito em prol do meio ambiente aqui.

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