Quem não gosta de uma boa história? Quando bem contada, ela educa, entretém, encanta e motiva seus ouvintes como ninguém. Quando se trata de “comer fora”, histórias são capazes de elevar o status de uma refeição, do simples cumprimento de uma necessidade fisiológica a uma experiência transcendental a ser lembrada. Diante disso, há cada vez mais chefs e restaurateurs reconhecendo o poder da contação de histórias para seus negócios.
No restaurante Preludio, em Singapura, Fernando Arevalo apresenta o que ele mesmo chama de “cozinha de autor” em capítulos que mudam ao longo do ano. Pratos que aparentam ser “engessados” à primeira vista desdobram-se em gratas surpresas quando costurados às comoventes histórias, fruto da relação próxima de Arevalo com seus fornecedores. Em todos os pratos, o garçom - ou o próprio chef - conta uma anedota sobre o produto usado ou sobre a origem daquela receita.
Entre uma etapa e outra, uma delicada garrafa de vidro é trazida à mesa e os comensais são convidados a sentir o aroma do vinagre balsâmico que está dentro dela. O vinagre é daqueles consistentes, que derramam vagarosamente feito um melaço, fruto de décadas de apuro. Enquanto o cliente inspira seus aromas, ele escuta a história da viagem de Arevalo para a Itália, quando ficou hospedado em um quarto no andar de cima da casa de um produtor artesanal de vinagre balsâmico - e o cômodo cheirava exatamente como o vinagre da garrafa.
“É isso o que eu chamo de ‘cozinha de autor’. Qualquer um pode fazer uma massa recheada de abóbora, mas ninguém pode replicar a inspiração que eu tive ao caminhar pelo sótão com uma vela nas mãos, sentindo o cheiro daquele vinagre balsâmico. A experiência foi tão intensa que me fez querer compartilhar a sensação com o mundo”, afirma Arevalo. “Quando você prova esse prato, você esquece que é abóbora, baunilha, amaretto e queijo parmesão; ele te transporta diretamente para aquele sótão.”
“A nova alta gastronomia não é apenas executar as técnicas culinárias perfeitamente, mas fazer as pessoas se envolverem com o que eu estou fazendo”, acrescenta.
Levando os comensais a outro nível
A técnica da contação de histórias também ressoa no trabalho do chef Damian D’Silva, que há muito tempo é o principal portavoz da cozinha tradicional de Singapura. Em seu restaurante Folklore, em Singapura, ele pinça receitas dos cadernos de família para recriar sabores intensos, cheios de personalidade e “alma”. Seus pratos, carregados de influências euroasiáticas, com destaque para a cozinha peranakan (mistura entre China e Malásia), sempre vêm temperados com uma pitada folclórica.
“Acredito que a refeição se torna muito mais significativa quando se sabe a história por trás de cada prato. O jantar resgata uma memória que ela ou ele não sabiam até então. Não se trata de tornar a pessoa mais inteligente, mas de deixar a pessoa por dentro do assunto. Onde há consciência, haverá o desejo de procurar saber mais sobre aquela cozinha ou cultura”, diz D’Silva.
Mas enquanto esses chefs estão contando histórias do passado ou de suas experiência pessoais em seus pratos, há uma turma criativa - de donos de restaurantes e bares - dando um passo além, criando personagens ficcionais para enredar seu trabalho.
Quando Tay Eu-Yen e Sandra Sim fundaram o grupo Coterie Concepts, em 2014, eles foram os pioneiros a trazer comida asiática de qualidade para o ambiente de um bar moderno em Singapura. Enquanto rascunhavam o conceito do novo negócio, a personagem que “encarna” o bar começou a tomar forma. “Nós que queríamos alguém com quem as pessoas pudessem se identificar. Ela tinha que transmitir jovialidade, tendência e aquela vibe gangster de Hong Kong dos anos 1980”, contam.
Assim nasceu Mona. Na verdade, a história criada pelo Coterie começa com o restaurante Sum Yi Tai, personificado na figura da influente terceira esposa de um mafioso de Hong Kong, e com seu homônimo Mona Lounge, bar escondido na parte de trás do Sum Yi Tai. O enredo continua com sua rebelde enteada Eliza, um clube de coquetéis com a atmosfera de Xangai. A terceira personagem - ou seja, o terceiro negócio do grupo - é interpretada por Chi Kinjo, rival japonesa de Mona, ou um moderno sushi-bar baseado na Stanley Street.
“Meus bartenders contam histórias sobre a Mona; eles mesmos criam a própria história de como foram recrutados. Eles têm liberdade para isso. Além de se divertirem, eles têm um gancho para interagir com os clientes”, diz Tay, que criou as personagens.
Contação de histórias como ferramenta de negócio
Mais do que uma ideia pretensiosa e romântica, Arevalo acredita verdadeiramente que criar uma narrativa para a comida contribui para o bom funcionamento de um restaurante. “Por trás do esforço do artista está a solução do problema. Eu tenho uma cabeça muito lógica, mas acredito que usar a contação de histórias como uma ferramenta é a forma mais efetiva de dirigir um restaurante”, afirma.
Para Arevalo, a contação de histórias resolve mais de um problema comum em restaurantes, como, o principal deles, manter a equipe fiel e engajada. “No ramo dos restaurantes, a maioria dos postos funciona como trabalho temporário. A maioria dos cozinheiros está na área para alimentar seus familiares, ninguém pensa em ser garçom para o resto da vida, etc”, diz Arevalo. Ele acredita que incluir a equipe no processo criativo, à medida que o restaurante avança cada capítulo, dá aos funcionários uma sensação de pertencimento e propriedade. “Quero dar a eles algo pelo que lutar além do dinheiro. Esse conceito, essa história têm feito eles desejarem estar aqui e esse tipo de lealdade, para mim, tem valor inestimável.”
Para Tay, o enredo criativo do Coterie é, acima de tudo, estratégia de marca. “Nós acreditamos que a construção da marca é muito importante para qualquer negócio. Cada uma de nossas casas é independente, ainda que ligadas pelo enredo que criamos. Isso nos dá possibilidade de expansão e propaganda”, acredita. Como atina Tay, a cada nova abertura dentro do grupo, a marca como um todo é reforçada e, além disso, maior interesse sobre ela é gerado. “A marca se reconstrói a cada momento. Há curiosidade, inclusive, sobre os capítulos que estão por vir.”
Inspirando chefs na cozinha
“Ensinar a equipe a contar uma história é mais fácil do que ensiná-la a cozinhar de memória”, diz Arevalo sobre como sua equipe passa a apreciar os produtos com que trabalham na cozinha de maneira diferente.
“Quando se quer agregar valor às coisas, a história é o mais importante”, ele explica. “Se você conta para um cozinheiro que aquela manteiga é a mais cara do mundo, isso não significa nada para ele. Mas quando você conta a história do cara que faz a manteiga - e como ele mistura à mão nove tonéis de manteiga, duas vezes por semana, e mostra a eles uma foto dele com a pá e, depois, conta sobre seu pai e seu avô, que faziam exatamente a mesma coisa -, o cozinheiro passa a olhar àquela manteiga com outros olhos e pensa: ‘Ó, meu Deus, preciso proteger essa manteiga.’ Porque agora ela significa muito mais do que o quanto custa”.
“A história não é só para o convidado”, afirma D’Silva com convicção. “A mais importante contação de história acontece dentro da cozinha, quando você fala com sua equipe e a inspira.”