Fique por dentro 5 minutos 04 Abril 2019

Quando chefs se tornam contadores de histórias

Chefs e restaurateurs revelam seu talento para contar histórias e trazem personagens e narrativas ao conceito de seus pratos; a ideia é manter clientes e equipe engajados

Quem não gosta de uma boa história? Quando bem contada, ela educa, entretém, encanta e motiva seus ouvintes como ninguém. Quando se trata de “comer fora”, histórias são capazes de elevar o status de uma refeição, do simples cumprimento de uma necessidade fisiológica a uma experiência transcendental a ser lembrada. Diante disso, há cada vez mais chefs e restaurateurs reconhecendo o poder da contação de histórias para seus negócios.

No restaurante Preludio, em Singapura, Fernando Arevalo apresenta o que ele mesmo chama de “cozinha de autor” em capítulos que mudam ao longo do ano. Pratos que aparentam ser “engessados” à primeira vista desdobram-se em gratas surpresas quando costurados às comoventes histórias, fruto da relação próxima de Arevalo com seus fornecedores. Em todos os pratos, o garçom - ou o próprio chef - conta uma anedota sobre o produto usado ou sobre a origem daquela receita. 

Entre uma etapa e outra, uma delicada garrafa de vidro é trazida à mesa e os comensais são convidados a sentir o aroma do vinagre balsâmico que está dentro dela. O vinagre é daqueles consistentes, que derramam vagarosamente feito um melaço, fruto de décadas de apuro. Enquanto o cliente inspira seus aromas, ele escuta a história da viagem de Arevalo para a Itália, quando ficou hospedado em um quarto no andar de cima da casa de um produtor artesanal de vinagre balsâmico - e o cômodo cheirava exatamente como o vinagre da garrafa.


Chef Fernando Arevalo e seu prato La Cortina (Fotos: Preludio)
Em seguida, o prato La Cortina chega à mesa: um rechonchudo agnolotti recheado com purê de abóbora, aromatizado com baunilha e amaretto e finalizado com um fio daquele denso balsâmico. Seu nome é o mesmo daquele quarto que inspirou a criação da receita.

“É isso o que eu chamo de ‘cozinha de autor’. Qualquer um pode fazer uma massa recheada de abóbora, mas ninguém pode replicar a inspiração que eu tive ao caminhar pelo sótão com uma vela nas mãos, sentindo o cheiro daquele vinagre balsâmico. A experiência foi tão intensa que me fez querer compartilhar a sensação com o mundo”, afirma Arevalo. “Quando você prova esse prato, você esquece que é abóbora, baunilha, amaretto e queijo parmesão; ele te transporta diretamente para aquele sótão.”

“A nova alta gastronomia não é apenas executar as técnicas culinárias perfeitamente, mas fazer as pessoas se envolverem com o que eu estou fazendo”, acrescenta.

Levando os comensais a outro nível

A técnica da contação de histórias também ressoa no trabalho do chef Damian D’Silva, que há muito tempo é o principal portavoz da cozinha tradicional de Singapura. Em seu restaurante Folklore, em Singapura, ele pinça receitas dos cadernos de família para recriar sabores intensos, cheios de personalidade e “alma”. Seus pratos, carregados de influências euroasiáticas, com destaque para a cozinha peranakan (mistura entre China e Malásia), sempre vêm temperados com uma pitada folclórica.


Damian D'Silva's e os pratos do seu Folklore (Fotos: Folklore)
D’Silva serve uma versão caseira de berinjela frita com suculento camarão, lambuzados em Sambal Juliana, pasta apimentada típica da Eurásia, feita com échalotes (tipo de cebola), camarão, pimentas, suco de limão e gula melaka (açúcar de palma). “Por um bom tempo, as pessoas me perguntavam ‘quem é Juliana? Ela é sua namorada?’”, conta o chef, rindo. Para ele, essa curiosidade abre espaço para contar sobre as raízes da receita e como ela foi criada na colônia portuguesa em Malacca, no século XVI, pela esposa de um capataz local, que queria recriar um prato tradicional português para seu marido doente. Assim, nasceu o Sambal Juliana, patrimônio culinário que representa um período da História.

“Acredito que a refeição se torna muito mais significativa quando se sabe a história por trás de cada prato. O jantar resgata uma memória que ela ou ele não sabiam até então. Não se trata de tornar a pessoa mais inteligente, mas de deixar a pessoa por dentro do assunto. Onde há consciência, haverá o desejo de procurar saber mais sobre aquela cozinha ou cultura”, diz D’Silva.

Mas enquanto esses chefs estão contando histórias do passado ou de suas experiência pessoais em seus pratos, há uma turma criativa - de donos de restaurantes e bares - dando um passo além, criando personagens ficcionais para enredar seu trabalho.

Quando Tay Eu-Yen e Sandra Sim fundaram o grupo Coterie Concepts, em 2014, eles foram os pioneiros a trazer comida asiática de qualidade para o ambiente de um bar moderno em Singapura. Enquanto rascunhavam o conceito do novo negócio, a personagem que “encarna” o bar começou a tomar forma. “Nós que queríamos alguém com quem as pessoas pudessem se identificar. Ela tinha que transmitir jovialidade, tendência e aquela vibe gangster de Hong Kong dos anos 1980”, contam.

Assim nasceu Mona. Na verdade, a história criada pelo Coterie começa com o restaurante Sum Yi Tai, personificado na figura da influente terceira esposa de um mafioso de Hong Kong, e com seu homônimo Mona Lounge, bar escondido na parte de trás do Sum Yi Tai. O enredo continua com sua rebelde enteada Eliza, um clube de coquetéis com a atmosfera de Xangai. A terceira personagem - ou seja, o terceiro negócio do grupo - é interpretada por Chi Kinjo, rival japonesa de Mona, ou um moderno sushi-bar baseado na Stanley Street.


Histórias são levadas a sério nas casas do grupo Coterie Concepts (Foto: Coterie Concepts)
Essas histórias cruzadas são contadas no site de cada uma das casas (todas em Singapura) - em postagens “reais” em forma de blog -, nas contas de Instagram e, inclusive, na descrição dos coquetéis. A narrativa é reforçada pelas equipes dos bares, que expressam grande prazer em compartilhar as histórias de suas “patroas”.

“Meus bartenders contam histórias sobre a Mona; eles mesmos criam a própria história de como foram recrutados. Eles têm liberdade para isso. Além de se divertirem, eles têm um gancho para interagir com os clientes”, diz Tay, que criou as personagens.

Contação de histórias como ferramenta de negócio

Mais do que uma ideia pretensiosa e romântica, Arevalo acredita verdadeiramente que criar uma narrativa para a comida contribui para o bom funcionamento de um restaurante. “Por trás do esforço do artista está a solução do problema. Eu tenho uma cabeça muito lógica, mas acredito que usar a contação de histórias como uma ferramenta é a forma mais efetiva de dirigir um restaurante”, afirma.

Para Arevalo, a contação de histórias resolve mais de um problema comum em restaurantes, como, o principal deles, manter a equipe fiel e engajada. “No ramo dos restaurantes, a maioria dos postos funciona como trabalho temporário. A maioria dos cozinheiros está na área para alimentar seus familiares, ninguém pensa em ser garçom para o resto da vida, etc”, diz Arevalo. Ele acredita que incluir a equipe no processo criativo, à medida que o restaurante avança cada capítulo, dá aos funcionários uma sensação de pertencimento e propriedade. “Quero dar a eles algo pelo que lutar além do dinheiro. Esse conceito, essa história têm feito eles desejarem estar aqui e esse tipo de lealdade, para mim, tem valor inestimável.”


Chef Fernando Arevalo e equipe do restaurante Preludio (Foto: MICHELIN Guide Digital)
Arevalo também sinaliza que as temáticas de suas histórias funcionam efetivamente como estratégia de marketing. “Com esse conceito, tenho a oportunidade de voltar a falar com meus clientes sempre que eu quiser, de ser interessante outra vez, independente das minhas escolhas. Eu não preciso esperar o Dia das Mães ou o Natal ou o Ano-Novo Chinês para promover algo novo.”

Para Tay, o enredo criativo do Coterie é, acima de tudo, estratégia de marca. “Nós acreditamos que a construção da marca é muito importante para qualquer negócio. Cada uma de nossas casas é independente, ainda que ligadas pelo enredo que criamos. Isso nos dá possibilidade de expansão e propaganda”, acredita. Como atina Tay, a cada nova abertura dentro do grupo, a marca como um todo é reforçada e, além disso, maior interesse sobre ela é gerado. “A marca se reconstrói a cada momento. Há curiosidade, inclusive, sobre os capítulos que estão por vir.”

Inspirando chefs na cozinha

“Ensinar a equipe a contar uma história é mais fácil do que ensiná-la a cozinhar de memória”, diz Arevalo sobre como sua equipe passa a apreciar os produtos com que trabalham na cozinha de maneira diferente.

“Quando se quer agregar valor às coisas, a história é o mais importante”, ele explica. “Se você conta para um cozinheiro que aquela manteiga é a mais cara do mundo, isso não significa nada para ele. Mas quando você conta a história do cara que faz a manteiga - e como ele mistura à mão nove tonéis de manteiga, duas vezes por semana, e mostra a eles uma foto dele com a pá e, depois, conta sobre seu pai e seu avô, que faziam exatamente a mesma coisa -, o cozinheiro passa a olhar àquela manteiga com outros olhos e pensa: ‘Ó, meu Deus, preciso proteger essa manteiga.’ Porque agora ela significa muito mais do que o quanto custa”.


Prato do chef Damian D’Silva, do Folklore (Foto: Folklore)
Seguindo a mesma linha, D’Silva usa as histórias para ensinar a complexa e diligente cozinha peranakan, onde a maioria das técnicas é demorada e deve ser feita à mão. “Você é um só, portanto, na cozinha de um restaurante, você precisa encontrar pessoas que pensem como você. Você pode dar uma receita na mão da sua equipe e ela vai conseguir reproduzi-la com 90% de perfeição, mas é só. Quando você quer que seus pratos atinjam os 10% restantes, é preciso colocar alma. É aí que a história entra.”

“A história não é só para o convidado”, afirma D’Silva com convicção. “A mais importante contação de história acontece dentro da cozinha, quando você fala com sua equipe e a inspira.”

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